sábado, 12 de dezembro de 2009

Sou homem como tu

De repente, encontrava-me numa antessala. Havia uma mesa sobre uma plataforma no centro. As paredes ao redor, revestidas de muitos detalhes, encantavam pela beleza, e, as colunas, uniam-se no alto umas as outras através de arcos. Deveras, tratava-se de um local magnífico e de muito esplendor, remetendo-me ao prazer estético. Minha missão naquele local me parecia pontual: eu deveria estudar o tecido de linho que, segundo dizem, fora o mesmo que cobriu o corpo de Cristo quando retirado da cruz - o Santo Sudário.

A sala ficava em nível rebaixado em relação à entrada. Caminhei em direção à plataforma e pedi para ver o Sudário. Um homem, atendendo a solicitação, desenrolou uma peça sobre a mesa. Olhei, e imediatamente percebi que aquilo não era o Sudário. Na verdade, fora-me exposta uma tela, onde se via, inúmeros quadrinhos, como num tabuleiro de xadrez. Cada quadro tinha uma figura, e suas cores eram muito vivas, onde o vermelho era a de maior abrangência e destaque. Um dos meus irmãos, o Raphael, acompanhava-me naquela visita. Enquanto eu tentava entender o que significava aquilo, uma vez que esperava ver o Sudário, afastou-se de mim meu irmão.

Rodeei a mesa, colocando-me em outra posição. Olhei para minha direita. Vi que havia uma porta numa das paredes, que era a entrada para outro cômodo. Encontrava-se semiaberta, por isso, observava o que acontecia lá dentro. A penumbra dominava o ambiente. Uma grande janela, que se estendia até o alto, permitia que raios de luz atravessassem suas frestas e dissipassem um pouco das trevas em seu interior. Em frente à janela, um homem em vestes brancas caminhava de um lado para o outro, e, atribui tal conduta, à preocupação. Naquele instante, como se uma seta de entendimento penetrasse em meu espírito, compreendi algo: aquele era o quarto do Papa; o homem em seu interior, ele próprio.

Enquanto eu observava a cena, Raphael, estendeu sua mão e tocou a parede. Quase que simultaneamente, eu o repreendi: “Cuidado, não incomode o Papa!”, disse com veemência.

Num momento em que me encontrava parado ao lado da mesa, um outro homem, de súbito, surgiu. Assemelhava-se a um frade, e seu aspecto transmitia violenta preocupação. Com uma das mãos, ele tampava sua boca e nariz, na tentativa de proteger-se do ar que respirava. Demasiadamente agitado, perguntou-me se porventura, eu ignorava o fato de que além da porta encontrava-se o quarto do Papa, retirando-se em seguida. E alcançou-me novamente a seta: de uma doença contagiosa, o Papa sofria.

Alguns instantes se passaram e o homem retornou. Trouxe consigo, estendida em seus braços, uma túnica vermelha. Entregou-a em minhas mãos, e, saiu apressadamente. Ao recebê-la, desejei vesti-la, e sai para um passeio pelo esplendoroso palácio. Eu me sentia feliz, e até certo ponto, divertia-me. Subi alguns degraus, e virei à direita, saindo daquela câmara. Caminhei pelo corredor, e no final dele, à direita, havia um posto de recepção. Nele, encontravam-se duas senhoras que, aproximando-me delas, com um ar de respeito e reverência, cumprimentaram-me dizendo: “Santidade...”

Quando as ouvi, disse: “Não se preocupem, pois lavarei antes de devolvê-la”, referindo-me à túnica que vestia. Olharam-se, e em seus lábios, discretos sorrisos, como se eu fizesse uma amável e singela brincadeira. Ao observar tal comportamento, atingiu-me a seta do entendimento pela última vez: verdadeiramente, eu era o novo Papa!

Por alguns segundos, refleti. Compreendendo minha posição, meu coração encheu-se de alegria. Eu gostava do que acontecia. Um sentimento de muito prazer preenchia minha alma. De repente, ouvi clamores, e meus olhos foram transportados para além daquelas paredes. Do alto, eu vi uma grande multidão reunida numa enorme praça defronte ao palácio, ovacionando-me e dando-me as boas-vindas

Deixei as senhoras, e, caminhando, adentrei em um grande salão, cuja parede a minha esquerda era de pedras e possuía aberturas como janelas. Jovens encostados nas paredes observavam minha passagem. Eu sorria e observava seus rostos. De início, estranhei por não vê-los ajoelhando-se, pois, imaginava, seria a atitude natural diante do Papa. No entanto, não era algo que eu desejava.

Ao chegar ao final do salão, havia três ou quatro degraus. Na iminência da descida, um homem correu ao meu encontro, reverenciou-me e ajoelho-se diante de mim, tomado de intensa emoção. Censurando-lhe a atitude, pedi que se levantasse depressa e afirmei: “Não te ajoelhes diante de mim, pois, como disse Pedro: sou homem como tu”. E o sonho acabou. Bem, no mínimo, um sonho bastante estranho para um huguenote. Trecho do meu livro, de um sonho que tive em 2004.

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