quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Todo mundo quer ser vaca

Aconteceu lá pelas bandas da Normandia, nos tempos do meu exílio...

- [...] Tu não gostarias de ter nascido vaca como eu?

- Eu acho que não... ser vaca deve ser bem monótono. Tu ficas aí, o dia inteiro, olhando para o horizonte. Ora come um pouco de grama, ora caminha até a cerca e depois volta. Não há grande vantagem em ser vaca.

- Tu tens razão, minha vida é bastante monótona, mas não posso reclamar. Na verdade, eu até que tenho sorte. Eu dou leite. Existem algumas amigas que não têm a mesma sorte.

- Eu não sabia que as vacas tinham sorte..., retrucou o menino.

- Têm sim, meu caro. Algumas de minha classe, quando atingem certo peso, são mortas para que os de sua classe comam carne. E então? Ainda acha que não tenho sorte?

- É mesmo, tu tens muita sorte de que nós precisamos de leite.

- Eu sei... de leite e de queijos também. É por isto que não posso reclamar. É a vida...

- Mas o que vai acontecer contigo no dia em que teu leite secar?

- Olha, não quero nem pensar nisto. Por favor, não me assuste!

- Desculpe, não queria te assustar.

- Tudo bem, eu sei que não tinhas esta intenção. Ai, ai... eu gostaria mesmo é de ser uma vaca indiana.

- Por quê? Não te sentes feliz em ser uma vaca leiteira destas bandas?

- Bem, vaca indiana é muito melhor. Uma vaca na Índia tem status de rainha. Ninguém pode tocá-las, pois são sagradas.

- Sagradas? Como assim?

- Na Índia, as vacas são respeitadas. Toda vaca gostaria de ter nascido indiana, porque, embora sejamos todas vacas, somente na Índia alcançamos o respeito que merecemos.

- Entendo...

- Não, tu não entendes. Somente uma vaca entenderia.

- Por que te consideras tão sábia?

- Amigo, tu és ainda muito menino. Quando tu fores grande, entenderás o que digo. Todo o homem gostaria de ser uma vaca indiana.

- Ah não, eu não quero ser nenhuma vaca! Estou muito satisfeito como menino, mesmo que não conheça muita coisa.

- Tu que pensas meu caro. Quando eu acordo pela manhã, e vêm tirar meu leite, ouço muitas histórias.

- Que histórias?

- Bem, vou te contar algumas. Sabe, um dos que me ordenham, disse que se tivesse condições, teria suas próprias vacas. Daí, ele mesmo decidiria sobre sua vida, sem precisar trabalhar para os outros.

- Puxa, o que isto tem de mau?

- Tu não entendes mesmo... és muito menino. Vou te contar outra. Conhece o homem que mora na casa com jardim, perto da ordenha?

- Sim, meu pai chama ele de veterinário.

- Pois então... ouvi ele dizer que na capital, não era ninguém; mas aqui no campo, todo muito precisa dele. E mais: à professora da escolinha perto da porteira, ninguém pergunta nada lá na igreja; ao padre, ninguém o cumprimenta lá na cidade.

- Explica-me, por favor!

- Está bem menino. Ouça... a Índia é o reino das vacas. Lá elas são soberanas. Todo mundo quer ser soberano.

- Por que todo mundo quer ser soberano?

- Ora, porque no teu reino os outros te admiram.

- Admiram?

- Sim, eles admiram... Ocorre quando as pessoas olham para ti, e te veem com pelo menos o dobro do tamanho que tu tens, e todos querem ser grandes. Tu não queres ser grande?

- Quero sim! Meu pai sempre me diz que um dia eu vou ficar grande e poderei fazer coisas que eu quero, mas ainda não me deixam porque sou pequeno.

- Entendo, todos os homens são iguais...

- Então, se me admiram, deixarão que eu faça o que eu quiser?

- Sim, sim. Mas para isto, tu precisas do teu reino. Só dentro do teu reino tu aumentas teu tamanho.

- Eu acho que entendi. Eu queria ter nascido uma criança indiana.

- Céus! Ser vaca destas bandas não é fácil mesmo...

Escrito em 25/08/2010.

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