segunda-feira, 21 de março de 2011

Lembranças da casa dos avós

Lembro-me que amava a casa dos meus avós. Uma casa de madeira, simples, muito simples, nem pintura tinha. Os objetos me encantavam... Gostava muito da passadeira emborrachada, decorada de arabescos. Eu contornava suas linhas com os olhos e amava sentir sua textura lisa e gelada.

Na sala havia um armário em madeira. Era o tempo dos móveis que duravam bastante. Ele ficava encostado na parede à direita da porta da cozinha. As janelas da sala eram em madeira, e os vidros eram erguidos e presos no alto por travas em forma de borboletas. Também tinha duas abas que se abriam, uma para a esquerda e outra para a direita. Nas manhãs, quando fechadas, os raios de sol penetravam por entre as frestas. Dela, era possível ver o cajueiro. Foi naquela janela que vi meu avô pela última vez. Eu passava no caminho e ele, sentado em sua cadeira, com os braços cruzados na base da janela, descansava o queixo sobre eles. Parecia triste. Aquela foi a última vez que o vi. Se eu soubesse disto, teria olhado uma vez mais.

O armário era alto, na altura do umbigo de um adulto. As gavetas estavam no centro, umas três, como três andares. Nas laterais, separadas pelas gavetas, havia portas. Elas só ficavam fechadas porque meu avô providenciara tramelas. No entanto, o que mais me agradava, era girar os puxadores adaptados por ele também. Não sei como ele os conseguiu, pois, os puxadores não pareciam originais. Eram peças de plástico que giravam, presas no centro por um prego ou parafuso. Ficava feliz em girá-los, girá-los e girá-los, especialmente o puxador vermelho.

Sobre o armário, havia uma caixinha de música. Na verdade, uma caixinha de vidro que comportava um relógio. A peça tinha uma estrutura metálica, cor de bronze, e parecia um carrossel fechado. Abaixo do mostrador, um objeto esférico do tamanho de uma bola de gude, de onde saiam quatro perninhas (como se fosse uma cadeira com um acento arredondado). Ele ficava suspenso, preso pelo eixo até a base, onde, havia uma gavetinha. Quando eu a abria, automaticamente aquela cadeirinha girava acompanhada de uma melodia. Costumava chamá-la de robô. Na parte traseira, havia uma borboleta para dar a corda no relógio e, abaixo, no robozinho.

Na parede em que o armário encostava, à esquerda da janela, ficava uma placa de madeira branca, com inúmeros ganchos que sustentava a coleção de chaveiros do meu avô. Nunca soube quantos eram, mas toda placa estava repleta. Dentre os que eu me recordo, existia a réplica de uma moeda. O que me chamava atenção era o diâmetro dela, pois, nenhuma moeda que eu conhecia era grande como medalhão.

Ao lado da coleção de moedas, meu avô tinha um quadro interessante. Nunca vi outro igual até os dias de hoje. Era um quadro grande, mais comprido que largo. Nele estava escrito: A Vida do Lápis. Então, abaixo do texto, um pedaço de madeira bruta sucedia outro, evoluindo lentamente e se transformando numa coleção de diversos tipos de lápis. Era o processo de fabricação. Um deles sumiu. Tratava-se de um lápis de carpinteiro. Meu avô tirara quando precisou dele. Abaixo, estavam alguns tubinhos cheios de pós escuros e coloridos, o grafite.

Na sala, ficava a poltrona do meu avô. Era o seu trono. Ele se sentava lá, nas tardes, e quando percebíamos, escutávamos seus roncos. A poltrona era velhinha, rasgada, e em cada um dos braços, um buraco, como se meu avô, tivesse navalhas nos cotovelos. De vez em quando, ele a submetia a algum conserto.

O chão era de madeira, e gostava muito quando minha avó o encerava. Era diferente. Em alguns pontos da casa, o assoalho tinha frestas e eu podia com os olhos bem rentes ao chão enxergar o porão. Aliás, muitas vezes me aventurei ao engatinhar naquele misterioso lugar, que exalava o cheiro de terra.

Num cantinho da sala, após tê-la atravessada por completo, ficava um sofá. Eu gostava muito daquele cantinho, pois, sentia uma sensação de proteção. O velho sofá, ao levantar-me nele, permitia-me alcançar a janela e ver o quintal com o grande pinheiro araucária bem pertinho da casa. Bem abaixo da janela, um jardim, onde meus avós cultivavam algumas plantas e rosas.

Um dos cômodos que mais me agradavam era o quartinho de costura. Uma cama, à esquerda da porta, era coberta por muitos pedaços de retalhos de tecidos ou roupas limpas para passar. Amava mergulhar e me cobrir. Às vezes, eu me sentava na cama e observava minha avó costurar. A máquina, de fabricação alemã, funcionava a pedaladas, e após o uso, era recolhida, bastando que a baixasse para dentro de sua caixa. A luz entrava pela janela, na parede onde a máquina encostava. Acima da máquina ao lado da janela, uma lâmpada incandescente ajudava a iluminar o trabalho. Daquela janela, observa o quintal, um abacateiro, uma parreira de uvas verdes que escondia uma valeta por onde escorria a água que saia do banheiro. O banheiro já não era apenas uma casinha com um assento vazado, mas, já tinha um sanitário e um chuveiro. O chão era em cimento bruto, as paredes de madeira, e ficava do lado de fora da casa. Tudo feito pelo meu avô. Quando havia falta de água, costumava usá-lo, pois, devido ao declive do terreno, a casa dos meus avós era a primeira a chegar água na torneira.

Os cômodos internos da casa não tinham portas, mas sim, cortinas, por exemplo, entre o quarto dos meus avós e a sala. Sendo assim, se meu avô dormia, não era muito aconselhável fazer barulho na sala. O guarda-roupa dividia um único cômodo em dois: o quartinho de costura e o quarto do casal. Eu tinha muito pudor ao entrar nele. Isto, porque, era lá que ficava o guarda-roupa. Não me recordo de algum dia tê-lo aberto sem autorização. Em seu interior, era o lugar onde guardavam as coisas mais preciosas da casa, como os documentos, comprovantes de contas pagas e até uma das jóias do casal, que, no dia em que fiz 18 anos, meu avô me presenteou. Na semana em que ele se foi, voltei a casa. Estávamos eu e minha avó no quarto. Ela abriu o guarda-roupa. Tirou o atestado de óbito para me mostrar. Enquanto isto, eu ouvi uma voz masculina na porta da cozinha. Corri, na esperança de que ele tivesse voltado...

Os quadros suspensos me encantavam. Lembro-me que aprendi a desenhar rostos observando as pinturas. Eu estudava minuciosamente cada traço, e isto me ajudou a reproduzir detalhes da figura humana mais tarde. As molduras eram trabalhadas e ficavam inclinadas presas por um barbante, como se os retratados desejassem observar quem passava abaixo. As faces eram pintadas a óleo. Num dos quadros, minha mãe quando criança, em outro, meus tios quando pequenos vestidos com terninho, e ainda, meu avó e minha avó quando jovens. Minha bisavó falecida (de quem eu costumava balançar o monte de pele flácida e enrugada dos braços enquanto ela assistia a novela), também tinha o seu retrato. Nesta época, ela era a única que deixava saudades. Hoje, também o meu avô.

Na cozinha, minha avó colocava uma lata de mantimento sobre a cadeira. Depois, na hora do almoço, sentava-me sobre a lata para regular minha altura na mesa. Enquanto ela lavava a louça, ficava em pé numa cadeira ao lado da pia. Na varanda, lembro-me do fogão a lenha onde era cozido o feijão e das cascas de laranja cortadas em espiral, secas, suspensas em um arame. Ao lado do fogão, um banco cujo assento era móvel, ou seja, servia como baú. Em seu interior, guardavam-se pacotes de papel em que vinham embrulhados os pães. Depois, eram cortados em forma de retângulos, onde meu avô espalhava fumo e enrolava como um canudo. Depois, colava com saliva para fumá-lo.

O único cômodo onde havia uma porta, era um quartinho ligado à cozinha. Fora o quarto dos meus tios enquanto solteiros. Um dos tios de minha avó, de idade avançada e saúde debilitada dormia ali. Ele costumava levar doces para as crianças todos os fins de tardes enquanto ainda caminhava. Foi ali também, que ele se foi. Quando isto aconteceu, minha avó estava com ele. Lembro-me da vela acesa ao lado da cama de um quarto agora vazio.

Uma das colunas da varanda, era um tronco de madeira bruta, onde meu avô coçava as costas. Eu o observava roçando o corpo nela. Era também na varanda que meu avô “consertava” os peixes, e as escamas pulavam por todos os lados ao raspar a faca neles.

As coisas mudaram muito desde estas lembranças. Poucas coisas sobraram. As lembranças permanecem. As crianças crescem. Recordar, faz-me sentir a infância novamente... E depois, sinto a velhice que ainda não chegou: que lembranças deixarei se um dia for avô?

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